Documentários

terça-feira, 9 de julho de 2013



1.

o neoliberal
neolibera:
de tanto neoliberar
o neoliberal
neolibera-se de neoliberar
tudo aquilo que não seja neo (leo)
libérrimo:
o livre quinhão do leão
neolibera a corvéia da ovelha

2.

o neoliberal 
neolibera 
o que neoliberar
para os não-neoliberados:
o labéu?
o libelo?
a libré do lacaio?
a argola do galé?
o ventre-livre?
a bóia-rala?
o prato raso?
a comunhão do atraso?
a ex-comunhão dos ex-clusos?
o amanhã sem fé?
o café requentado?
a queda em parafuso?
o pé de chinelo?
o pé no chão?
o bicho de pé?
a ração da ralé?

3.
no céu neon
do neoliberal
anjos-yuppies
bochechas cor-de-bife
privatizam
a rosácea do paraíso
de dante
enquanto lancham
fast-food
e super
(visionários) visam
com olho magnânimo
as bandas
(flutuantes)
do câmbio:

enquanto o não
- neoliberado
come pão 
com salame
(quando come)
ele dorme
sonhando
com torneiras de ouro
e a hidrobanheira cor
de âmbar
de sua neo-
mansão em miami




4.

o centro e a direita
(des)conversam
sobre o social
(questão de polícia):
o desemprego um mal
conjuntural
(conjetural)
pois no céu da estatís-
tica o futuro
se decide pela lei
dos grandes números

5.
o neoliberal
sonha um mundo higiênico:
um ecúmeno de ecônomos
de economistas e atuários
de jogadores na bolsa
de gerentes
de supermercado
de capitães de indústria
e latifundários de 
banqueiros
- banquiplenos ou
banquirrotos
(que importa?
dede que circule
autoregulante
o necessário
plusvalioso
numerário)
um mundo executivo
de mega-empresários
duros e puros
mós sem dó
mais atento ao lucro
que ao salário
solitários (no câncer)
antes que solidários:
um mundo onde deus
não jogue dados
e onde tudo dure para sempre
e sempremente nada mude
um confortável
estável
confiável
mundo contábil.

6.
(a
contramundo
o mundo-não
-mundo cão-
dos deserdados:
o anti-higiênico
gueto dos
sem-saída
dos excluídos pelo
deus-sistema
cana esmagada
pela moenda
pela roda dentada
dos enjeitados:
um mundo-pêsames
de pequenos
cidadãos-menos
de gente-gado
de civis
sub-servis
de povo-ônus
que não tem lugar marcado
no campo do possível
da economia de mercado
(onde mercúrio serve ao deus mamonas)

7.
o neoliberal
sonha um admirável
mundo fixo
de argentários e multinacionais
terratenentes terrapotentes coronéis políticos
milenaristas (cooptados) do perpétuo
status quo:
um mundo privé
palácio de cristal
à prova de balas:
bunker blau
durando para sempre - festa estática
(ainda que sustente sobre fictas
palafitas
e estas sobre uma lata
de lixo)

Haroldo de Campos

segunda-feira, 8 de julho de 2013



Me colaram no tempo, me puseram

uma alma viva e um corpo desconjuntado.
Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações…
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noites, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas. Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”…
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito…
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre
em transformação.


Murilo Mendes

quarta-feira, 3 de julho de 2013

o povo brasileiro


Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto da nossa fúria. A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.


Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro